18 November 2019 -
Entre os mais de 4 mil animais de cerca de 250 espécies que vivem no Jardim Zoológico de BH, seis aves da espécie arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) destacam-se não só pela importância ecológica que representam – a espécie está criticamente ameaçada de extinção –, mas também por histórias curiosas e, por que não dizer, românticas dentro da instituição. A recente tentativa de formação de um novo casal com dois indivíduos desta espécie – Rafael e Severina – é mais uma das ações que a instituição vem promovendo, dentro dos planos de conservação que envolve instituições nacionais e internacionais, para tentar reproduzir a espécie rara e garantir sua sobrevivência, inclusive na natureza, por meio de possíveis futuras tentativas de reintrodução nos ambientes naturais.
Esta é a primeira tentativa de aproximação no Zoo de BH de araras-azuis-de-lear que apresentam deficiência física. Rafael e Severina viviam na natureza, mas em função das ações do tráfico de animais silvestres, tiveram suas asas amputadas. Após serem resgatadas pelos órgãos ambientais em condições de saúde bastante delicadas, foram encaminhadas pelo Plano de Ação Nacional da Arara-azul-de-lear para diferentes zoológicos do Brasil para reabilitação. Com a deficiência física, a sobrevivência na natureza já não era possível e, por isso, ambos ficaram sob cuidados humanos em outras instituições, sendo, mais tarde, encaminhadas ao Zoo da capital mineira, em momentos distintos.
Das seis aves desta espécie que hoje vivem no local (sendo três machos e três fêmeas), metade possui deficiência física decorrente de ações do comércio ilegal de animais silvestres. Apesar disso, têm um enorme potencial genético para permitir a sobrevivência da espécie, por meio de cruzamento.
Para entender como é desafiadora a tentativa de aproximação de Rafael e Severina, é preciso antes lembrar que as araras-azuis-de-lear são aves com características muito específicas, dentre elas, a escolha de um parceiro fixo para toda a vida. No caso dessas araras, que costumam viver em casal na natureza, a expressão “Até que a morte os separe” é levada bem ao pé da letra e, exatamente por isso, representa um desafio para a conservação de espécies sob cuidados humanos.
A bióloga Márcia Procópio, gerente da Seção de Aves do Zoo de BH, explica que “essas aves estabelecem uma relação duradoura que pode ser comparada ao nosso amor romântico. Caso um dos dois venha a morrer, o parceiro pode não se acasalar mais com outros indivíduos, trazendo um desafio a mais para a reprodução da espécie, além dos cuidados e planejamentos que o manejo correto da espécie já requer”.
Portanto, a tentativa de aproximação de Rafael e Severina tem sido um dos desafios da equipe de Aves no momento. A mestranda em comportamento animal e estagiária da Seção de Aves da instituição, Melissa Bravo, explica que, para aumentar as chances de sucesso na aproximação dessas aves, tecnicamente chamada de “oportunização de pareamento”, também conhecida como “flocking”, foi necessário realizar uma preparação adequada do recinto para proporcionar conforto e segurança aos animais.
“Foram inseridos troncos de árvores em vários espaços do recinto para que os animais tenham uma chance de um deslocamento mais autônomo e contínuo. E, como eles não voam, foi preciso interligar tanto a parte do fundo, quanto a parte da frente do recinto dando acesso aos bebedouros, comedouros e outros locais”, explica ela, que desenvolve um projeto com as araras-azuis-de-lear no Zoo de BH.
A estratégia de aproximação dos indivíduos também incluiu a inserção de enriquecimentos ambientais, de caráter alimentar, para gerar estímulos olfativos, táteis e de paladar que pudessem fazer com que as araras ficassem mais ativas em seu recinto. “Em geral, Rafael e Severina têm recebido alimentos como milho, nozes, castanhas, pau-de-canela, galhos diversos de árvores frutíferas ou de bambu (floresta). Tudo com o intuito de proporcionar mais bem-estar e qualidade de vida para os animais, aspectos muito importantes também para favorecer a aproximação entre eles”, esclarece Melissa.
Na primeira semana de aproximação do Rafael e da Severina, conforme relata Melissa, houve a colocação de vários desses elementos ao longo do dia e, ao mesmo tempo, observação contínua dos animais, com acompanhamento pela manhã e tarde, justamente por ser algo bastante delicado, em decorrência da possibilidade de brigas. Nas semanas seguintes, já foi possível notar uma boa interação entre a dupla, o que traz boas expectativas para a equipe técnica do Zoo de BH.
Melissa destaca que nesse processo de aproximação é preciso atenção e paciência. “O ritmo de entendimento do casal é bem particular e os avanços acontecem paulatinamente”, destaca a mestranda. Além da observação direta, o novo par é monitorado por câmeras internas de vídeo, que permitem que os técnicos acompanhem suas reações, mantendo distância para evitar situações que poderiam causar estresse ao novo par.
Após mais de um mês de convivência já podem ser notados alguns avanços. Se, a princípio, os dois ficaram meio receosos com a presença de um novo indivíduo em seu espaço, agora já manifestam comportamentos mais próprios da espécie, se sentem seguros para vocalizar, apresentar uma “agressividade positiva” (própria de um animal silvestre), se deslocar pelo recinto e interagir um pouco mais entre si. Isso é um bom sinal, especialmente se considerarmos que a época do acasalamento ainda não começou e que, por isso, as duas aves terão mais tempo para se “conhecer” e, quem sabe, consolidar de vez uma relação que poderá durar pelo resto da vida.
Histórias de fidelidade
Rafael e Severina não são as primeiras araras-azuis-de-lear a serem colocadas em um programa de aproximação para tentativa de formação de casal. O primeiro casal de araras-azuis-de-lear a se formar no Zoo de BH e que até hoje vive no local é um verdadeiro caso de amor e fidelidade, além do tempo e do espaço. Elisa e Franklin são originários da natureza (ou seja, não nasceram sob cuidados humanos), mas viviam na Fundação Lymington, da Espanha, onde os dois já estavam pareados.
Em 1998, por questões técnicas, Franklin foi transferido para o Jardim Zoológico de São Paulo e dois anos mais tarde, em 2000, Elisa foi trazida para o Zoo de Belo Horizonte. Após vários anos sem contato, em 2015, os dois participaram de um flocking no Zoológico de São Paulo, onde se reconheceram e passaram a viver juntos novamente. De volta a BH, agora novamente como um casal, um não saiu mais do lado do outro. “Mesmo após decorridos vários anos, essas aves se escolheram de novo, em meio a mais de 50 indivíduos diferentes de arara-azul-de-lear com os quais conviveram em diferentes instituições!”, destaca Márcia Procópio, gerente da Seção de Aves do Zoo de BH.
Características da espécie
Vale ressaltar que a arara-azul-de-lear é uma espécie endêmica que ocorre na região do Raso da Catarina, na Bahia. É uma ave da ordem dos Psittaciformes, da família Psittacidae. Também conhecida como arara e arara-azul-menor, é uma das aves mais raras do mundo, criticamente ameaçada de extinção. Seu nome “ave de Lear com bico desdentado” vem do grego anodön (sem dente, desdentado); e rhunkos (bico); e de leari, learii, em homenagem ao artista, escritor e explorador inglês Edward Lear (1812-1888).