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À frente de loja com chicote de couro, berrante e outros acessóros rurais, senhor de idade.
Foto: Bruno Sales/PBH

BH em Pauta: Casos do Mercado Central

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Quando o senhor Aguiar abriu a barraquinha no então Mercado Municipal de Belo Horizonte, aos 33 anos, vendia milho para pipoca – “o melhor milho da cidade”, nas palavras dele – amendoim, pimenta malagueta, rapadura, coco e mel. Naquela época, meados de 1957, o mercado ainda era a céu aberto. “Se chovesse, molhava tudo aqui dentro”, comenta.

Ele abastecia mais de cem pipoqueiros que se espalhavam pelas praças, cinemas, portas de clubes e pontos de bondes daquela antiga Belo Horizonte. Mas, mesmo com o sucesso de vendas, ainda não tinha mostrado ao mundo o maior talento. Nascido e criado na roça, trazia gado de corte para a capital, a cavalo. Como todo bom peão, tocava como ninguém o berrante para tourear a boiada. Afinal, conduzir cerca de cem cabeças de gado em dois dias de viagem não era tarefa fácil.

Não demorou muito para que o senhor Aguiar virasse o Rei do Berrante, com uma nova loja no Mercado Central, há mais de 30 anos. Agora, aos 92 anos de idade, José Aguiar Gomes de Oliveira, além de vender berrantes – e dar aulas de como tirar som do instrumento aos clientes –, comercializa também cabrestos, laços de boi, cabeças de boi embalsamadas, chifres, garrafas e copos feitos com pé de boi e estampas de times de futebol. “Acompanhei esse mercado levantar cada tijolo. E foi com o meu trabalho aqui que criei meus nove filhos”, relata o Rei do Berrante. Hoje, mesmo um pouco atrapalhado com as contas, ele se orgulha de ter mais de 40 netos, mais de 30 bisnetos e quase 20 tataranetos.

O senhor Aguiar não pode mais tocar alto o berrante porque colocou, recentemente, um marca-passo no coração. Mas ele continua lá, trabalhando todos os dias na loja, contando a quem quiser histórias de um dos três melhores mercados do mundo - como elegeu a revista de bordo da Tam Linhas Aéreas, reconhecendo o valor e as atrações do Mercado Central de Belo Horizonte.

Ao mesmo tempo em que Aguiar estava se instalando no Mercado Central, outra barraca começava a ter destaque com a venda de queijos, rapadura e pimentas. Percy Rosa de Miranda, 87, começava a história como comerciante sem saber que, após 63 anos de trabalho no Mercado, “sem nunca tirar férias”, estaria no mesmo lugar, com a loja de alhos. “Mas não é só do alho que eu vivo, não. Também vendemos cebola, cachaça, pimentas e até bolsas artesanais para sacolão”, explica Percy.

O Mercado surgiu em 1929, por decisão do prefeito da época, Cristiano Machado, que reuniu, em um só local, produtos destinados ao abastecimento dos belo-horizontinos. O terreno de 22 lotes, próximo à Praça Raul Soares, abrigou os feirantes, centralizando o abastecimento da população. Nos 14 mil m² do terreno descoberto, circundado pelas carroças que transportavam os produtos, as barracas de madeira se enfileiravam para a venda de alimentos. O Mercado Municipal funcionou assim até 1964.

“Em 1964, o então prefeito [Jorge Carone] decidiu vender o mercado. Mas deu a prioridade aos comerciantes. Eu estava lá e me lembro que o mercado todo custava 730 mil cruzeiros. Era muito dinheiro e tivemos que fazer de tudo para conseguir arrematar o mercado. Pedimos emprestado, vendemos alguns bens, mas conseguimos dar a entrada na data acertada. Graças a Deus”, relembra Percy. Depois que a documentação foi normalizada, criou-se uma associação dos comerciantes do mercado. Com isso, ganhou o nome de Mercado Central.

Mas nem tudo foram flores. “Quando o Exército tomou o poder, em 1964, os militares quiseram nos tirar o mercado. A sorte é que contávamos com o serviço de um eficiente advogado, que não deu brecha para isso acontecer. Novamente, Graças a Deus”, comenta, ainda comemorando, o senhor Percy. Com a loja, que tem como carro-chefe o alho, ele criou “e formou” três filhos. “E se eles precisarem de emprego hoje, podem voltar para trabalhar com o pai. Pois daqui eu não saio”, pontua Percy.

 
Gastronomia Mineira

A simplicidade de ingredientes e produtos com riqueza histórica e cultural que envolve índios, africanos e portugueses faz da comida de Minas uma das mais sedutoras do planeta. E, de acordo com a historiadora e guia de turismo da Belotur, Neuma Horta, o Mercado Central é a síntese de toda essa riqueza gastronômica. “Existe uma brincadeira que diz que se você não encontrar o que está procurando no Mercado Central é porque não existe. Se pensar em termos de produtos da cozinha mineira, a coisa fica séria. O Mercado tem produtos de qualidade de qualquer região de Minas Gerais e é referência em todo o país em relação a isso”, comenta a historiadora.

No Mercado Central, um dos restaurantes mais tradicionais é o Casa Cheia. O proprietário Ilmar Antônio de Jesus conta que a história do restaurante passa pela história da mãe dele, Maria de Nazareth, que vendia bananas, queijos e doces. Por volta da década de 50, ela resolveu montar o restaurante e, por estar sempre muito bem frequentado, ganhou o nome de Casa Cheia. “Em um determinado momento, minha mãe resolveu vender o restaurante. Mas eu, ainda estudante de Engenharia, não deixei. Tranquei meu curso e assumi o negócio. O curso está até hoje trancado!”, conta Ilmar, que se tornou chef de cozinha e participa de diversos festivais gastronômicos Brasil afora.

O carro-chefe do restaurante é o Mexidoido Chapado, um mexidão feito na chapa com iscas de alcatra, lombo, linguiça caseira, arroz, legumes preparados no azeite, ovo frito de codorna e ervas aromáticas. Outro destaque da casa fica por conta das Almôndegas Exóticas, feitas com carne de sol recheadas com queijo ao creme de abóbora com manjericão. Vale a pedida!



O segredo do sucesso

Para Geraldo Henrique Figueiredo Campos, presidente do Mercado Central, o segredo do sucesso está no modelo de gestão. “Com a Associação, temos regras, temos um estatuto, que têm que ser seguidos. Mas isso não quer dizer que a Administração tenha poder para interferir no modelo de comércio de cada lojista. Assim, garantimos a identidade do Mercado, garantimos que famílias possam manter as tradições, com a qualidade dos produtos e com a criatividade que convier”, comenta Campos.

De acordo com ele, se não existisse uma Associação, com participação de todos os lojistas, muitos deles não conseguiriam manter os negócios. “Tem loja aqui que vende somente farinha, um produto com baixo valor agregado. Mas aqui, com o movimento que temos e com a gestão compartilhada entre todos, esse comerciante consegue manter bem o negócio”, explica Campos, que também possui uma loja, herança do pai, no Mercado.

 
Curiosidades

- Durante a Copa do Mundo, o então embaixador dos Estados Unidos visitou o Mercado Central. Em sua agenda diplomática, tinha apenas 20 minutos para passear por lá. Gostou tanto que gastou duas horas e 30 minutos fazendo compras nas lojas do Mercado.

- O Mercado Central foi eleito pela revista de bordo ‘TAM nas nuvens’ o terceiro melhor mercado do mundo, perdendo somente para o Mercat de la Boqueria (Barcelona, Espanha) e para o Borough Market (Londres, Inglaterra).

- Atualmente, o Mercado Central possui cerca de 400 lojas, distribuídas nos seus 24 mil metros quadrados.

- Das 400 lojas, 50 existem somente para a venda de queijos, a paixão do mineiro.

- De segunda a sexta, o Mercado Central recebe aproximadamente 30 mil pessoas.

- Aos fins de semana, o número de visitantes pode chegar a 80 mil por dia.

- Mensalmente, são vendidas cerca de 300 toneladas de queijo no Mercado Central, mais que todo o estado de Minas Gerais.

- É o único mercado privado do país.
 

 

04/08/2017. Histórias de comerciantes com mais de 60 anos de Mercado Central enriquecem a visita ao atrativo. Fotos: Arquivo/PBH