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Fachada do Edifício Maletta durante a noite.
Foto: Amira Hissa/PBH

BH em Cantos: Maletta, um Patrimônio Democrático

criado em - atualizado em
Se no dicionário maleta é sinônimo de uma mala pequena, em Belo Horizonte a palavra ganha um novo significado: o nome caiu nas graças dos belo-horizontinos por causa de um dos prédios mais convidativos da cidade, o Conjunto Arcângelo Maletta. O prédio situado à rua da Bahia, esquina com avenida Augusto de Lima, no Centro, é conhecido como local de boemia, e mescla, há mais de 50 anos, atividades comerciais com apartamentos residenciais, restaurantes e bares, que dão fôlego ao título de “capital dos botecos” carregado pela cidade. De território democrático em tempos da ditadura a ponto de encontro entre os produtores e consumidores da arte nos dias de hoje, o Maletta continua a ser um dos mais interessantes cenários da vida cultural e histórica de BH.
 
Com 19 andares na área comercial e 31 no espaço residencial, o Maletta tem 319 apartamentos, 642 salas, 72 lojas e 74 sobrelojas. Os apartamentos somam cerca de 1.300 moradores e abrigam estudantes organizados em repúblicas ou famílias que compraram o imóvel à época da construção. Além do movimento dos moradores, cerca de cinco mil frequentadores circulam diariamente pelos corredores, em busca de serviços diversos que vão de lan houses a escritórios de advocacia, passando por costuras, consertos de relógios e calçados, entre outros.
 
Tantos estabelecimentos, apartamentos e bares rendem histórias inusitadas. A vendedora Osmarina Ferreira dos Santos trabalha na Livraria Xazam, um dos sebos mais antigos do local, em funcionamento desde a década de 1960. Professora aposentada, Osmarina gosta de dar orientações sobre o acervo, ainda que às vezes considere não ter vocação para vendedora. “Um dia desses chegou alguém procurando livros de filosofia clássica e acabou se interessando por um livro de autoajuda indu. Perguntei se ele realmente ia levar o livro e então eu disse que “esse negócio de auto-ajuda só ajuda quem escreveu o livro, quem vai ler não vai ter ajuda nenhuma. Ele ficou sem graça e não levou nada”, contou. A história curiosa acrescenta um charme ao local, que tem pilhas altíssimas de livros amarelados nas laterais e na mesa de centro, deixando pouco espaço para o trânsito dos interessados em livros variados.
 
 

Memória

 
Quem relembra a importância da memória do espaço é Maria Fernanda Moreira, uma das sócias do restaurante Marcelina Belmiro, situado na varanda do segundo andar. “O Maleta tem um histórico cultural importante desde a resistência à ditadura, com locais como a Cantina do Lucas e o Centro de Cultura, onde eram exibidos filmes. Aqui sempre foi o epicentro cultural de BH, e, ainda hoje, é um lugar onde as pessoas vêm tomar uma cerveja depois das manifestações.”
 
Maria Fernanda, que já teve dois espaços culturais diferentes no edifício em um período de 15 anos, diz ter um caso antigo com o local. O restaurante dela também tem um quê de memória: o nome é uma homenagem aos avós da outra sócia fundadora do Marcelina Belmiro. As paredes são repletas de lembranças do passado, que evocam uma mercearia ou casa do interior: fotos antigas, cestas artesanais com frutas, filtro de barro, coador de pano para cafezinho. Um verdadeiro encontro com a antiga Minas Gerais.
 
Além do solzinho de todas as tardes, a varanda do segundo andar do prédio, no cruzamento da avenida Augusto de Lima com rua da Bahia, também presenteia os frequentadores com uma bela vista: quem está voltado para a rua da Bahia pode ver prédios antigos como o azul, dos Correios, e o Museu da Moda, bege e com vitrais coloridos.
 
Artur Belisário, estudante de engenharia mecânica da UFMG, trouxe os dois colegas alemães para conhecer o Maletta. Francisca Zacharias e Philip Stich estão estagiando no Brasil há três semanas e visitaram o local pela primeira vez. “Conheci o Maletta na faculdade. sou de Timóteo”, conta Artur. “Gosto daqui demais, do ambiente e das pessoas, venho toda sexta. Convidei os colegas para conhecer a tradição”, disse, referindo-se à vocação do local para a boemia.
 
 

Grande Hotel

 
O edifício foi construído onde era o Grande Hotel, aberto em agosto de 1897, quatro meses antes da inauguração de Belo Horizonte. O local recebeu personalidades como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral e foi comprado pelo italiano Arcângelo Maletta, que o gerenciou de 1919 até 1953, ano da morte dele. O prédio foi vendido à Cia de Empreendimentos Gerais, que o demoliu em 1957 para inaugurar, em 1961, o Conjunto Arcângelo Maletta, em homenagem ao último dono do hotel.
 
Desde a edificação, os bares do conjunto se integraram à vida cultural da cidade. A Cantina do Lucas, aberta desde 1962, foi frequentada por escritores e músicos como Murilo Rubião, Nivaldo Ornelas, Wagner Tiso e Milton Nascimento. O bar é tombado pelo Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura e teve como funcionário Olympio Perez Munhoz, conhecido como Seo Olympio, imortalizado no Guinness Book por ser o garçom que permaneceu por mais tempo em atividade no Brasil.
 
Nas décadas de 1960 e 1980, o edifício reuniu escritores, jornalistas, intelectuais, atores e estudantes. Nos anos 1990, passou a ser alvo de “turismo de ocasião”, recebendo visitas de casais da periferia, figuras boêmias e viajantes. Desde então, o movimento dentro do edifício se tornou peculiar: durante o dia, lojas e restaurantes oferecem serviços cotidianos; à noite, os bares predominam.
 
Repleto de histórias e personagens, o Maletta continua sendo um ponto de encontro democrático, aberto a todas as tribos, e ganhou novo fôlego com a abertura de bares e restaurantes no segundo andar, desde 2010.
 
 

Empreendedor do setor hoteleiro

 
Arcângelo Maletta nasceu na região da Calábria, na Itália, em 18 de novembro de 1875, filho de Vicente e Theresa Maletta. Chegou ao Brasil aos 14 anos, com outros imigrantes, para trabalhar na cultura do café, em São Paulo, e naturalizou-se brasileiro com o tempo. Mudou-se para a cidade de Queluz de Minas, região que originou 23 cidades mineiras, onde trabalhou em um hotel e adquiriu conhecimentos do setor.
 
Com a família, mudou-se para Belo Horizonte, onde fundou e adquiriu vários hotéis. Em 1918 adquiriu, por 300 contos de réis, o Grande Hotel, que pertencia a Cícero Ferreira e funcionava na rua da Bahia, 1.136, esquina com avenida Paraopeba, atual avenida Augusto de Lima. Enquanto mantinha o Grande Hotel, Maletta explorou também o Hotel Itajubá, depois o Hotel Serrador, o Hotel da Montanha, Hotel Ouro Verde e o Hotel Alto da Tijuca, todos no Rio de Janeiro.
 
 

03/08/2017. BH em Cantos - Malleta. Fotos: Amira Hissa/PBH